14/04/2023 1:02 pm | Atualizado em: 14/04/2023 1:02 pm
Esta pergunta – “Tendes algo de comer?” – veio do coração do Mestre Jesus, ressuscitado, o vencedor da morte. Era uma manhã na praia, conforme narra o evangelista João. Os pescadores, discípulos de Jesus, ouviram o questionamento e, desolados, responderam que nada tinham. Então o Mestre indicou: “Lançai a rede à direita do barco e achareis”. Eles obedeceram e não conseguiram puxá-la, por causa da grande quantidade de peixes. Neste momento, os discípulos reconheceram o milagre, também aquele que o promovera: é o Senhor! Um mistério que remete à aprendizagem da nova e definitiva lição, formulada pelo apóstolo Paulo, na Carta aos Romanos. Paulo sublinha que Cristo Ressuscitado dos mortos não morre mais, a morte já não tem poder sobre Ele. Pois Aquele que morreu, morreu para o pecado uma vez por todas, mas Aquele que vive é para Deus que vive.
O discipulado no seguimento de Jesus Ressuscitado toca a vida no seu núcleo de sustentação: Cristo, referência insubstituível e inigualável, é fonte da lógica que deve presidir toda a existência. Ter algo para comer é imprescindível para viver. O alimento definitivo vem pela iluminação alcançada na oferta redentora que Cristo faz de si, na ceia pascal, consumada no alto da cruz, pela oblação que faz de Seu corpo e sangue. Os discípulos compreendem e são desafiados a reger-se pela competência de responder à interrogação do Mestre Jesus: a partir de Cristo, o ser humano encontra seu verdadeiro alimento, aquele que conduz à vida. Longe desse alimento, o caminho da humanidade será orientado por dinâmicas destrutivas: ressentimentos e mágoas que sufocam a fraternidade, deixam espíritos conturbados, impondo uma cegueira nas pessoas que passam a enxergar apenas nos limites dos próprios juízos e escolhas, aprisionadas em interesses pequenos, pouco nobres. Com isso, deixa-se de reconhecer a presença de Deus na própria vida. Uma perda grave, que leva a adoecimentos.
“Tendes algo de comer?” É uma interrogação com força de advertência, explicitando os limites humanos. Remete à importância determinante de escutar os clamores dos outros, especialmente daqueles que não têm algo para comer – são milhares e milhões pelo mundo afora. A escuta dos clamores daqueles que sofrem, particularmente de quem enfrenta a fome, à luz da pergunta formulada por Jesus, conduz à lógica da generosidade e da partilha – remédio para as inimizades e mágoas forjadas por limitações humanas e espirituais: a incapacidade para perdoar e alargar o coração e hospedar o amor. O amor é o único agente de reconciliação e de recomposição da fraternidade universal.
A pergunta do Mestre remete ao flagelo da fome – uma ameaça à dignidade humana. Sabe-se que uma carência prolongada de alimentação provoca debilidades graves, instaura apatias, impõe a perda do sentido social. Compreende-se a urgência da escuta da pergunta do Mestre e a importante celeridade para respondê-la com um “sim”. São urgentes os envolvimentos organizacionais da sociedade e a adoção de políticas públicas capazes de vencer a fome. Uma vitória que depende também da efetivação de um novo estilo de vida – compromisso de todos – distante dos hábitos que levam ao esgotamento do meio ambiente. Reverter os cenários abomináveis de desolação e de abandono provocados pela fome significa também contribuir para superar situações que destroem as famílias, levam violência aos lares, às cidades e ao campo. A carência alimentar gera, ainda, adoecimentos físicos e psíquicos.
Acolher a pergunta que brotou do coração de Cristo Ressuscitado, voz dos famintos e excluídos, é o primeiro passo para reverter a aporofobia tão disseminada na sociedade. É desolador constatar que muitos cultivam aversão e desprezo em relação aos pobres, hostilizando ainda as iniciativas que buscam oferecer dignidade a quem sofre. A
interpelante interrogação feita por Jesus aos seus discípulos desafia todos os cidadãos, especialmente os cristãos. Deve inspirar sensatez e humanismo, para que sejam alcançadas novas respostas, mais eficazes no enfrentamento de muitos flagelos sociais, particularmente no combate à fome. Aqueles que exemplarmente trabalham pela cura dessa chaga social podem ser inspiração, convencendo cada vez mais pessoas a também se unirem para amparar quem não tem o que comer.
A partir de Cristo, é urgente forrar corações com o tecido da compaixão, capaz de inspirar uma nova ordem social livre do flagelo da fome. Especialmente os cristãos devem ter sempre presente a advertência de São João Crisóstomo que, por volta do século quarto da era cristã, disse: “Muitos cristãos saem da Igreja e contemplam fileiras de pobres, e passam longe, sem se comover, como se vissem colunas e não corpos humanos. Apertam o passo como se vissem estátuas em lugar de homens que respiram. E, depois de tamanha desumanidade, se atrevem a levantar as mãos aos céus e pedir a Deus misericórdia e perdão pelos seus pecados”. A voz de Jesus seja escutada como clamor dos pobres e famintos: “Tendes algo de comer?”
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)